O Conselheiro Vasconcellos – parte II
Na semana de lançamento da tradução feita pelo Conselheiro Vasconcellos do Digesto ou Pandectas, do Imperador Justiniano, chegou até nós, graças à generosidade do prof. Eduardo Marchi, um dos organizadores/supervisores da obra, mais informações sobre o Conselheiro Manoel da Cunha Lopes e Vasconcellos, nome que agora se “alça ao panteão dos grandes juristas brasileiros filhos ilustres da Bahia”, ao lado de Teixeira de Freitas, Rui Barbosa e Orlando Gomes, conforme palavras do professor!
Manoel nasceu em 29 de junho de 1843 em Valença, cidade berço dos Vasconcellos e também dos Galvão e dos Queiroz. Tinha cinco irmãs: Ana, Rita, Francisca, Hermínia e Maria Benedicta, avó de nosso personagem principal aqui no blog, Alexandre Queiroz.
Manoel casou-se com Isabela Galvão de Queiroz (que passou a ser Isabela de Queiroz Vasconcellos), por sua vez filha de Alexandre José de Queiroz, professor catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia, e Anna Rosa da Cunha Galvão de Queiroz. Isabela tinha ao total sete irmãos (três mulheres e quatro homens), entre eles o Marechal Inocêncio, de quem já falamos neste blog, e Aristides Galvão de Queiroz, que se casou com a irmã do Conselheiro, Maria Benedicta, avô portanto de nosso Alexandre Queiroz.
Aliás, temos que registrar que o livro “Memórias de Alexandre Queiroz – da estirpe baiana à família catarinense” foi de grande valia para os organizadores da obra agora lançada, ajudando os professores a entender melhor quem é quem na grande família Vasconcellos de Queiroz. Somos citadas inúmeras vezes nas notas de rodapé da Introdução ao livro, tendo sido marcante que o único registro da tradução que se teria, houvesse o manuscrito sido perdido para sempre, seriam as palavras de Alexandre Queiroz sobre o antepassado Manoel (embora tivesse confundido o pai Manoel com seu filho, este sim o tradutor): “Minha avó Maria Benedicta, por mim chamada de vovó Maria, embora fosse mais conhecida por “Benedita”, era filha de Comendador Manoel da Cunha Menezes e Vasconcelos e Hermínia de Figueiredo Lopes de Vasconcelos, ele irmão mais velho de Zacarias de Goes e Vasconcelos e muito famoso na família pela sua alta cultura e saber jurídico, tendo inclusive traduzido para o português o “Corpus Juris Civilis” dos antigos Romanos.”
As duas famílias, “Vasconcellos” e “Galvão de Queiroz”, como era de se esperar conviviam muito. O Conselheiro Vasconcelos era assim um tio querido e próximo dos sobrinhos filhos de Aristides e Maria Benedicta. Sobretudo, acreditamos, porque o casal Manoel e Isabela não teve filhos. Chegamos a nos perguntar se teria acontecido alguma tragédia fatal à Isabela quando ainda recém-casada. Porém, consta dos registros de passageiros do Porto do Rio de Janeiro de 1877 que o Conselheiro desembarcou “acompanhado de sua mulher e dois criados”. E segundo os costumes da época, imaginamos que o casamento tenha ocorrido na década de 1860. Portanto, não tiveram filhos por questões naturais. Como mulher e mãe, me coloco no lugar de Isabela, provavelmente “carregando o peso” – naqueles tempos – de não ter filhos ao passo que convivia intensamente com a família de Aristides e Maria Benedicta, que tiveram entre 1874 e 1887 nove filhos…
Manoel se formou na Faculdade de Direito de São Paulo – Largo São Francisco (atual USP) em 1864 e mudou-se para o Rio de Janeiro no ano seguinte (teria se casado nesse interregno?), onde atuou como advogado, subdelegado e juiz de paz, até o começo de 1867. Em abril de 1867 foi nomeado “juiz de órfãos” em Salvador/BA, iniciando sua carreira na magistratura e retornando ao seu Estado natal. Ficou nesse cargo até 1871, quando então passou a atuar como juiz substituto. Em 1874 assumiu sua primeira comarca como juiz titular em Jardim, Estado do Ceará. Três anos depois, a seu pedido, foi transferido para Castro, no Paraná, onde morou até 1882.
Seu amor pelos livros o acompanhou a vida toda. Em Castro, paralelamente à sua função de juiz de direito, Manoel fundou a biblioteca pública da cidade, da qual consta como primeiro bibliotecário, que funcionava em sua própria casa e que contava, em 1880, com 1.200 volumes, segundo publicação do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro de 8/6/1880. Foi nesse mesmo ano que o Conselheiro recebeu em sua casa D. Pedro II e a Imperatriz Tereza Cristina, que viajavam em comitiva pelo interior do Paraná para averiguar as colônias de imigrantes russos e alemães que começavam a se implantar naquela região.
Em 1883, Manoel volta à sua cidade natal, Valença/BA, como era o seu desejo. E, por fim, nove anos depois, em 1892, é nomeado Conselheiro (hoje Desembargador) do então Tribunal de Apelação e Revista da Bahia (em Salvador), sendo eleito Presidente do Tribunal em 1896, cargo no qual se aposentou no ano seguinte.
Volta então para Valença, onde fica até sua morte, em 1920, constando do rol de profissões da cidade como “juiz substituto seccional”.
Foi durante sua aposentadoria, até o ano de 1915, que o Conselheiro trabalhou na sua maior e mais importante empreitada: a tradução do Digesto ou Pandectas de Justiniano, obra que acaba de ser lançada na Bahia e em São Paulo.
A casa em que o Conselheiro morava em Valença era chamada de “Estância Azul” e é hoje tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultura da Bahia. Herdaram a casa, quando de sua morte, as sobrinhas (filhas de Aristides e Maria Benedicta) Maria Arminda (a tia Badá, para os da família), Maria Francisca (a tia Xixi) e Maria Hermínia (a Tieta), passando mais tarde para o irmão delas Antônio Bernardo (o nosso tio Totônio).
Aliás, os manuscritos da tradução feita pelo Conselheiro também ficaram com tio Totônio, que tentou publicá-la algumas vezes, chegando a escrever uma carta para Orlando Gomes, então Diretor da Faculdade de Direito da Bahia, em 1956, 10 anos depois que a obra já estava em poder do Governo baiano (com inúmeros pareceres de juristas renomados favoráveis à publicação), mas sem ter sido ainda publicada. Na carta se vê o envolvimento de tio Totônio, que sugeria maneiras de “adiantar a impressão” e que discutia a virgulação da obra, além de tirar dúvidas de vocabulário: “Num dos prefácios do Digesto há a palavra aceptilação, que eu nunca ouvi pronunciar. O rapaz que está dirigindo a composição, e que tomou por si mesmo o encargo de pôr tudo na ortografia nova, escreveu acetilação. E eu que não sei como é pronunciado o termo na linguagem corrente no meio jurídico, fiquei sem saber se devo deixar assim mesmo. O inconveniente é que há em Química a expressão acetilação = introdução do radical acetila na fórmula de um corpo.”
Ao final da carta, registra: “Devo dizer que tenho feito muita revisão e nunca encontrei composição tão esmerada como essa que me vem agora, sendo que quase tudo a corrigir é do original”.
Mais de 60 anos depois, finalmente a tradução do Conselheiro Vasconcellos é publicada. A história completa de como foi encontrado o manuscrito e dos trabalhos de organização e preparação da obra está no prefácio do livro Digesto, a partir de hoje nas melhores livrarias do ramo!
De qualquer forma, os descendentes do Conselheiro hoje, em pleno século 21, certamente espalhados pelo Brasil (Bahia, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro…), podem viver a satisfação de ver os esforços imensuráveis de seu tio-trisavô ou tio-bisavô, bem como do sobrinho dele Antônio Bernardo, concretizados numa obra cuja importância vem marcar o mundo jurídico brasileiro, latino-americano e mesmo mundial, uma vez que só há outras cinco traduções do Digesto que foram levadas a cabo por um único estudioso, e que essa é a primeira em Português e única da América Latina!
Um viva, ainda que tardio, ao Conselheiro Vasconcellos!
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