Caprichos do destino
Na foto acima, Alexandre Queiroz com o amigo e colega de faculdade José de Mello, em 1940.
Lê-se atrás da foto, que Alexandre enviou à noiva, Dulce:
“Madía*:
Para matar as saudades…
O outro é José de Mello.
Estou “chorando”, contando o dinheiro. Foi nas antivésperas da formatura…
Seu noivo e amigo,
Alexandre
Ba., dez. 1940.
(Não coloque no álbum)”
*Madía era como Alexandre chamava Dulce. Do italiano “mia dea”, minha deusa.
Para além de tudo o que as entrelinhas dessa mensagem revelam, somos levados a um texto escrito por José de Mello. Uma palestra que proferiu não sabemos em que ocasião, à qual denominou “Caprichos do Destino”, em que conta sobre três curiosos encontros que o destino lhe propiciou, sendo o terceiro deles com Alexandre Queiroz, razão pela qual mandou-lhe uma cópia, que Alexandre guardou junto às suas preciosas lembranças. Um texto que evidencia traços da história de Aracaju e do Paraná, e que traz em si o lembrete de que não controlamos tudo, de que expectativas nem sempre se confirmam e de que a beleza de encontros e reencontros é uma das coisas mais marcantes da vida!
[Adoraríamos ter pedido autorização à família de José de Mello para publicação de sua palestra. Infelizmente, não conseguimos mais informações sobre ele. Ficamos na esperança de que este post nos permita, quem sabe, ser encontrados, como mais um capricho do destino!]
Caprichos do Destino
Por José de Mello
De quando em quando me vêm à lembrança alguns acontecimentos de que fui participante e que me convencem da presença atuante do destino, essa força estranha e inevitável que provoca e cria eventos independentemente de nossos anseios, ou mesmo contra a nossa vontade.
Não foram, naturalmente, acontecimentos extraordinários, fantásticos ou miraculosos, dignos de divulgações e manchetes. Não, nada disso. Foram, ao contrário, eventos comuns, simples, mas bastante curiosos e interessantes e, acima de tudo, prazenteiros e inesquecíveis. Foram encontros e reencontros que se foram sucedendo em um certo período de minha vida e que dormitam no fundo de minha memória à espera de que alguma coisa os faça acordar, como ocorre agora quando necessito de um tema para esta despretensiosa e insulsa palestra.
O primeiro encontro ocorreu em abril de 1954, na cidade de Mandaguari, em nosso Paraná, quando fui ter àquela Comarca no início de minha carreira de Juiz. Ali encontrei, como Promotor interino, o Dr. Brasilino Moura Cardoso, a quem não conhecia, nem mesmo de nome. Ainda jovem, o Dr. Brasilino, além de estudioso da ciência jurídica, era um entusiasta e cultor das letras, tendo, alguns anos mais tarde, me enviado, com amável dedicatória, seu livro intitulado “Pirolito no país das abelhas”.
Pela necessidade de resolvermos em comum algumas questões forenses, passamos a manter uma maior aproximação e, com isso, fomos alargando e diversificando nossas conversações. Assim, em poucos dias, acabei por saber que o Dr. Moura Cardoso, como preferia ser chamado, era sergipano, motivo mais que suficiente para que eu quisesse conhecer, em maior profundidade, a vida desse ilustre conterrâneo de meus queridos e saudosos pais. Fiquei, então, sabendo que tanto ele como eu havíamos residido em Aracaju numa mesma época e que havíamos concluído o curso ginasial mais ou menos na mesma ocasião, ele frequentando o Colégio do Professor Zezinho Cardoso e eu, o Atheneu Estadual D. Pedro II. Naquela época, lá pelos idos da primeira metade da década de 30, Aracaju ainda era uma cidade pequena, com pouco mais de sessenta mil habitantes, cujos estudantes, embora frequentando colégios diferentes, se conheciam em sua maioria, ao menos de vista. Mas eu e o Dr. Moura Cardoso não nos conhecíamos e o curioso é que nós frequentávamos os mesmos lugares: a rua João Pessoa, que era a principal do comércio; as memoráveis retretas que se realizavam às quartas e aos domingos na Praça Fausto Cardoso; as partidas de futebol no campo do Cotinguiba; e até o mesmo sítio de seu tio Zequinha Cardoso, lá para as bandas do morro do Urubu, onde íamos todos nós em busca dos cajus mais bonitos e deliciosos que inda vi por esse Brasil afora… E, no entanto, nós não nos conhecíamos!
Foi preciso que o tempo rolasse para que, um dia, tão longe de Aracaju, numa pequenina cidade plantada em meio do cafezal que, exuberante e dadivoso, se espraiava pelo norte bravio do Paraná, viéssemos a nos encontrar vinte anos mais tarde! Curiosos caprichos do destino…
***
O segundo encontro ocorreu alguns meses depois, em fins de 1954, quando fui designado para atender a Comarca de São Gerônimo da Serra. Acredito que a maioria dos que me ouvem não conhece aquela cidadezinha levantada à beira da velha Estrada do Cerne, estrada que, saindo de Curitiba, demanda o Norte velho do Paraná. Apesar de antiga, São Gerônimo da Serra não havia acompanhado o desenvolvimento do Estado; continuava pequenina, esquecida, quase sem recursos e com diminuta população. Bastante fria e sujeita a constantes geadas, não se prestava ao plantio de café, motivo por que os seus munícipes insistiam em se dedicar, de preferência, ao plantio de milho e à criação de porcos.
Como Juiz Substituto, andando de comarca em comarca, eu havia deixado a família – a esposa e um filho – em casa do sogro, razão pela qual hospedei-me no melhorzinho dos dois hotéis que havia na cidade. Esse hotel, todo de material como se costumava dizer, continha uns oito quartos e pertencia a um casal de origem alemã que primava pelo asseio mas que persistia em servir, nas refeições, o tal do “chukruts”, que eu não tolerava como ainda não tolero até hoje.
Era hóspede do hotel, e isso fazia já algum tempo, o dentista Dr. Genuino Nunes Pereira, que mantinha seu gabinete dentário, razoavelmente instalado, em um dos quartos do hotel. O interessante, porém, é que o Dr. Genuino possuía um outro gabinete dentário montado dentro de uma antiga camionete toda fechada, com a qual percorria o município e municípios circunvizinhos, visitando sítios e lugarejos em busca de clientes. E, nessas suas andanças, extraindo e obturando dentes de caboclos e capiaus, ele permanecia fora durante dias seguidos e às vezes durante uma semana inteira. De repente, dirigindo aquele estranho calhambeque, lá surgia ele, cansado, sujo, “louco” por um banho e “doido” por um merecido descanso.
Com o correr dos dias nossas relações de amizade foram se estreitando e fiquei sabendo que o Dr. Genuino era do Rio Grande do Sul onde, na cidade de Porto Alegre, residiam sua esposa e uma filha. Nunca me disse, ao certo, por que vivia longe da família e nem chegou a me contar como fora descobrir e fixar-se numa cidade tão distante e pequenina. Vivia, contudo, em constante mutação: havia dias em que se mostrava esquivo, arredio, não querendo conversa com ninguém; em outros dias se mostrava alegre, comunicativo, ostentando seu sorriso largo e simpático. Observei que essa mutabilidade de procedimento adivinha das cartas que recebia da família. Era um emotivo que acabou por me tomar por conselheiro, mas, teimoso que era, nem sempre aceitava meus conselhos.
Bem, até aqui nada houve de curioso, mas ocorre que, certo dia, querendo mostrar que tinha parentesco com um militar de alta patente no Exército, disse-me ele com alguma empolgação:
– Eu sou primo do General Oswaldo Nunes dos Santos, e nos damos como se fôssemos irmãos.
Nessa conjuntura, comecei a rir, o que deixou o Dr. Genuino meio desconfiado e curioso. E, sem mais demora, resolvi deixá-lo boquiaberto, dizendo-lhe:
– Pois é, Dr. Genuino, esse mundo é mesmo bem pequeno, o General Oswaldo Nunes dos Santos é também meu cunhado… ele é casado com minha irmã Nininha.
E, assim, mais uma vez quis a fatalidade que eu fosse encontrar nos confins do Paraná, numa cidadezinha erguida à beira de uma velha estrada, alguém a quem eu não conhecia nem de nome, mas que, na verdade, era uma pessoa ligada por laços de parentesco a um de meus queridos cunhados.
Verdadeiros caprichos do destino!…
***
Até aqui falei apenas de encontros. Todavia, há, também alguns reencontros deveras interessantes, pelo menos para mim. Mas, dada a limitação do tempo que nos é reservado em nossas reuniões, vou ater-me a um só desses eventos, talvez o que mais me tenha impressionado pelas circunstâncias que o antecederam.
Em princípio de 1960, encontrava-me eu com atribuições judicantes na cidade e comarca de Peabiru, sem dúvida a melhor das cidades em que, nas minhas peregrinações de juiz, havia, até então, residido.
O Fórum estava instalado, na época, em um modesto prédio de madeira, medindo aproximadamente uns 7 a 8 metros de fachada e uns 20 de comprimento. Na parte da frente, separadas por um corredor de entrada, duas pequenas salas abrigavam os Cartórios do Cível e do Crime, e, no fim do corredor, uma sala ampla que servia para a realização das audiências e dos julgamentos pelo Tribunal do Júri. No fundo desse salão, uma pequena sala servia como gabinete do Juiz.
Certo dia estava eu despachando processos em meu gabinete quando, em dado momento, tive minha atenção despertada para alguém que, entrando no salão do júri, se encaminhava, a passos firmes, para meu gabinete. Pelo modo como se trajava – terno completo, gravata e chapéu – compreendi, de logo, que não se tratava de alguém da cidade, ou mesmo das cidades vizinhas. Fixei-lhe o olhar e reconheci naquela figura o Dr. Alexandre Muniz de Queiroz. Mal pude acreditar no que via e não sei qual de nós mais se surpreendeu: se ele ou se eu.
– Você?!
– Não, não é possível!…
E, ao gesto de espanto e às palavras de surpresa e admiração, seguiu-se um forte, demorado e fraternal abraço.
É possível que, neste momento, estejam todos a se perguntar com certa curiosidade: mas afinal quem é esse Dr. Alexandre que não conhecemos e de quem nunca ouvimos falar?
A resposta exige um voejar ao passado, um passado que já se faz distante no tempo e no espaço.
Vejo-me, então, a ressurgir na velha e pitoresca Bahia de quase meio século atrás. Corria o ano de 1936. Eu havia ingressado na Faculdade de Direito. Éramos 51 alunos a cursar o 1º ano, todos enfatuados e envaidecidos por nos julgarmos verdadeiras sumidades e futuros luminares do Direito. Com o correr do tempo, embora unidos, fomos como que nos separando em grupos, diversos e definidos, levados naturalmente pela afinidade de gestos e sentimentos. Meu grupo era composto por 6 ou 7 estudantes, dentre os quais Alexandre Muniz de Queiroz, a quem chamávamos carinhosamente de “desembargador”. Trajando quase sempre terno de casemira, não dispensava nunca o colete e o chapéu de feltro, muito embora o colete já tivesse caído da moda. Observador, metódico, inteligente e estudioso, não perdia oportunidade para revelar seus conhecimentos, expor suas ideias e defendê-las com veemência. Era um bom colega e um amigo sincero. Todos nós tínhamos como certo que o Alexandre haveria de seguir a magistratura e que seria, no futuro, um desembargador respeitável por sua retidão de caráter e saber jurídico.
E foi assim que, após cinco anos de estudos e camaradagem, sempre juntos, sempre amigos, concluímos o curso jurídico em dezembro de 1940. A partir daí cada um de nós tomou seu rumo em busca de afirmações na sociedade, tendo eu regressado para junto de meus pais, na cidade de Aracaju.
O tempo rolou. Os anos foram se sucedendo e, com eles, outros acontecimentos, novos propósitos, outros lugares, novas amizades. Eis-me, então, em Peabiru onde, afinal, eu e Alexandre voltamos a nos reencontrar: eu como juiz, ele, contrariando todas as nossas previsões, como advogado.
É verdade que ele chegou a exercitar a judicatura, mas acabou optando pela advocacia que lhe proporcionaria, afinal, maior liberdade e uma situação econômica mais vantajosa.
Estava residindo em Joaçaba, no vizinho Estado de Santa Catarina. Fora a Peabiru para propor uma ação e, por um desejo estranho, quis conhecer o Juiz, fato que lhe causou surpresa, uma vez que não era seu costume assim proceder.
E foi desse modo que, na pequenina cidade de Peabiru, tão distante da velha Bahia, eu e ele viemos a nos reencontrar depois de decorridos vinte longos anos do dia em que, ainda jovens e cheios de sonhos e esperanças, nos despedimos na querida e saudosa Faculdade de Direito.
Curiosos e interessantes caprichos do destino!
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